O que está acontecendo na Turquia?
13 de janeiro de 2014, São Paulo (publicado no jornal Folha de São Paulo) Até o AKP, Partido da Justiça e Desenvolvimento, do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan, começar a governar em 2003, a Turquia já tinha experimentado vários tipos de governos. Mas a soberania nunca pertenceu totalmente aos governantes eleitos. Havia outra soberania, sob a proteção dos militares e kemalistas, garantida por sucessivos golpes: 1960, 1971, 1980 e 1997. O AKP se apresentou como o partido dos liberais, conservadores e democratas e fez promessas para levar a Turquia à União Europeia, e assim conseguiu vencer as duas últimas eleições. Mas para compreender a Turquia deve-se antes conhecer o Hizmet, movimento de uma parte da população turca que se inspira no líder muçulmano Fethullah Gülen e realiza trabalhos em educação, mídia, assistência social, saúde, cultura e diálogo, com espírito de voluntariedade. O Hizmet sempre se manteve distante da política. Apenas uma vez deu orientação aos seus adeptos: votar a favor da mudança da Constituição, no referendo de 2010. Entenda-se: a atual Constituição turca é fruto do golpe militar de 1980, assegura tal soberania e impede a democracia plena. A alteração dela por uma civil foi a maior promessa do Erdogan. O resultado do referendo foi 58% a favor. Daí, em junho de 2013, um projeto para derrubar um parque em Istambul causou protestos populares. O Erdogan reagiu com intolerância, gerando semanas de caos e perda do prestígio internacional. Já em novembro, o governo elaborou uma lei para fechar os cursos de vestibular. O Hizmet possui centenas desses cursos; esse projeto causou protestos, pois os cursos são indispensáveis no ingresso às universidades. Em 17 de dezembro, um promotor da República revelou um esquema de corrupção de 87 bilhões de dólares financiado pelo Halkbank, um banco público. O diretor do banco foi preso após ser encontrado na sua residência 4,5 milhões de dólares escondidos em caixas de sapatos. Na casa do filho do ministro do Interior, Muammer Güler, foram encontrados dezenas de cofres e máquinas de contar dinheiro. Foi denunciado que o ministro da Economia, Zafer Çaglayan, recebeu mais de 49 milhões de dólares em propinas e um relógio de 700 mil dólares, dados por um iraniano de 29 anos, Reza Zarrab. Diante disso, o Erdogan alegou ser vítima de um jogo de "poderes externos", "estado paralelo" e impediu as investigações. Logo depois, a imprensa divulgou as decisões assinadas pelo governo na reunião do Conselho Nacional de Segurança de 2004, com medidas para acabar com o Hizmet. O Governo começou, então, uma campanha de difamação contra o Hizmet se valendo de dispositivos estatais, além de utilizar grupos privados de mídia. Diante dessas atuações antidemocráticas, alguns deputados renunciaram ao partido. Os ministros envolvidos nos casos de corrupção continuaram nos postos. O Ministro do Interior substituiu centenas de policiais e delegados que estavam trabalhando nas investigações. Só depois disso os envolvidos na corrupção renunciaram aos cargos. O ministro Bayraktar, do Meio Ambiente, também citado nos casos, disse antes da sua renúncia que fazia tudo por ordem do Erdogan, e se há ilegalidades ele deveria renunciar. Depois disso, em menos de 24 horas, o Erdogan renovou o governo. Logo depois, surgiu um outro esquema de corrupção envolvendo 100 bilhões de dólares, quatro ministros e dois filhos do Erdogan. As investigações foram impedidas pelo governo. Assim, o governo interferiu no Judiciário, desrespeitando a independência entre os poderes. O protesto dos adeptos do Hizmet e da maioria da população foi limitado ao Twitter, sem agressividade, ao contrário da forma que o exército online do governo se expressa. O Erdogan quer vencer as eleições de 2014. Para conseguir mais votos, pretende até libertar os presos planejadores de golpe militar contra seu governo em 2007. O governo, com mais de 12 anos no poder e maioria na Câmara, poderia acabar com o problema de terrorismo no país, mudar a Constituição e promover reformas para levar o país à UE. Nada disso está acontecendo. Não sei se ganhará as eleições, mas é certo que ele já perdeu a confiança do povo. SÔNIA DA SILVA PEREIRA, 40, é educadora e tradutora |